Introdução
A
ciência tem a função de compreender e explicar, mesmo que provisoriamente, os
fenômenos sociais e naturais, centrando-se em questões particulares e buscando
desafiar crenças convencionais. Para tanto, utiliza metodologias quantitativas
e ou qualitativas para focalizar e conhecer esses fenômenos (MAY, 2004).
As
metodologias quantitativas para descrever e explicar fenômenos ainda são
freqüentemente usadas nas pesquisas sociais. De inspiração positivista, partem
do princípio de que se deve empregar a mesma metodologia instrumental das
ciências naturais. Seguem um plano estabelecido com o máximo de rigor, visando
verificar uma teoria com a utilização de procedimentos de quantificação de tal
forma que a influência do pesquisador pode ser excluída. As metodologias
quantitativas, nas ciências sociais, têm sido criticadas por reduzir as
relações e fenômenos sociais e humanos a dados estatísticos.
Simplicidade,
estabilidade e objetividade, entendidos por Vasconcellos (2003) como elementos
do paradigma tradicional da ciência, são questionados quando as diferenças
entre a pesquisa social e as ciências naturais são reconhecidas, uma vez que os
pesquisadores podem interagir com aqueles que estudam. Afinal,
diferentemente
dos objetos na natureza, os homens são seres autoconscientes, que conferem
sentido e propósitos ao que fazem. Sequer podemos descrever a vida social de
modo acurado a menos que antes, apreendemos os conceitos que as pessoas aplicam
a seus comportamentos (GIDDENS, 1997, p.12-13).
Assim,
outro tipo promissor de investigação, de natureza qualitativa, tem sido
utilizado para compreender o problema e fatores subjacentes ao objeto
pesquisado, mediante estudos de pequenas amostras (MALHOTRA, 2001) e a
atribuição de sentido pelos próprios sujeitos.
A
pesquisa qualitativa baseia-se em várias abordagens teóricas resultantes de
diferentes linhas de desenvolvimento e considera a subjetividade dos
pesquisadores e sujeitos estudados parte integrante do processo investigativo.
Dessa forma, as reflexões, observações, impressões e sentimentos dos
pesquisadores tornam-se dados, constituindo parte da interpretação (FLICK,
2004).
Em
geral, essas abordagens podem ser sintetizadas em três posturas referentes à
forma de compreensão do objeto de estudo e foco metodológico: a tradição do
interacionismo simbólico, que estuda os significados atribuídos às atividades e
ambientes pelos indivíduos; a etnometodologia, que trata da elaboração das
realidades sociais; e as posturas estruturalistas ou psicanalíticas, que partem
de processos do inconsciente psicológico ou social (FLICK, 2004).
Entre
as várias abordagens e métodos qualitativos de pesquisa, pretende-se, neste
estudo, apresentar uma visão geral das origens, propósitos, fases,
procedimentos, critérios para avaliação e limitações da metodologia denominada
Teoria Fundamentada (Grounded Theory). Acredita-se que ela possa ser adaptada a
estudos de diversos fenômenos, em especial, os de natureza exploratória e
indutiva para o desenvolvimento de teorias “conceitualmente densas”, ou seja,
com muitas relações conceituais (GLASER; STRAUSS, 1967, p.31-32). As teorias
são construídas mediante procedimentos específicos que a tornam eficazes e
influentes. Assim sendo, espera-se que o texto contribua para esclarecer e
auxiliar os pesquisadores que pretendem conhecer melhor ou utilizar a
metodologia.
Teoria
Fundamentada (Grounded Theory)
A
Teoria Fundamentada pode ser compreendida como uma metodologia de natureza
exploratória que enfatiza a geração e o desenvolvimento de teorias que
especificam o fenômeno[1] e as condições para a sua manifestação. Um aspecto
central desta abordagem analítica é ser “um método geral de análise comparativa
[constante]” (GLASSER; STRAUSS, 1967, p.viii); daí ser freqüentemente citada
como método comparativo constante.
A
Teoria Fundamentada foi desenvolvida originalmente pelos sociólogos Glaser e
Strauss e publicada no livro “The Discovery Of Grounded Theory: Strategies for
Qualitative Research” (1967) com três objetivos definidos. O primeiro,
proporcionar uma base lógica para a teoria com a intenção de contribuir para
“fechar a lacuna entre teoria e pesquisa empírica” (p.vii). O segundo, propor
padrões e procedimentos mais adequados para descoberta da teoria. E por último,
validar a pesquisa qualitativa como método adequado e específico designado para
gerar uma teoria.
Outros
três livros foram escritos sobre a teoria. O segundo, “Theoretical Sensivity”
(GLASER, 1978), o terceiro, “Qualitative Analysis for Social Scientists”
(STRAUSS, 1987) para pesquisadores mais experientes, e o quarto, “Basics Of
Qualitative Research: Grounded Theory Procedures And Techiniques” (STRAUSS;
CORBIN, 1990). Essa última obra, que
discute os procedimentos e técnicas em detalhes e passo a passo, recebeu
críticas severas de Glaser ao considerar que Strauss e Corbin traíram as idéias
originais da teoria ao enfatizarem:
(1) Preconcepções ao invés de uma abordagem
aberta imparcial; (2) a geração de categorias de análises intensivas de um
único incidente, mais do que comparações constantes de incidentes; (3)
verificação ao invés de geração; (4) regras no processo de pesquisa ao invés da
emergência livre da teoria dos dados (ALVESSON; SKÖLDBERG, 2000).
Essa
visão decorre de descrição do próprio Glaser que, ao se intitular de
‘ortodoxo’, rotula Strauss de ‘revisionista’. A respeito dessa questão, Strauss
e Corbin (1990), no prefácio de seu livro “Basics Of Qualitative Research”,
esclarecem que o leitor encontrará algumas terminologias e procedimentos
diferentes entre as referidas obras. Argumentam que o fato se deve às reflexões
sobre as diversas experiências adquiridas no ensino e em projetos de pesquisas
específicos. Não obstante, asseguram que todos os trabalhos que escreveram
sobre o assunto expressam posições idênticas para a análise qualitativa e
sugerem os mesmos procedimentos básicos.
Muitos
pesquisadores classificam a Teoria Fundamentada como qualitativa. Isso parece
se derivar da constatação de que o foco metodológico é fortemente orientado
para os dados qualitativos. Além disso, a ênfase dada ao subtítulo do primeiro
livro publicado, Estratégias Para Pesquisa Qualitativa, e as publicações
subseqüentes, em que os autores evidenciam que escreveram especificamente para
pesquisadores qualitativos, reforçam o fato. Ressalte-se, todavia, que a Teoria
Fundamentada é uma metodologia geral, aplicável tanto a estudos qualitativos
quanto a quantitativos. Nesse sentido, Glaser e Strauss afirmam acreditar que
“toda forma de dados é útil tanto para a verificação quanto para a geração de
teorias, qualquer que seja a ênfase (...) ”. Esta depende das circunstâncias de
pesquisa, dos interesses e treinamento do pesquisador e dos tipos de materiais
necessários para a teoria (GLASER; STRAUSS, 1967, p. 17-18).
A Teoria Fundamentada tem sido
utilizada em várias áreas do conhecimento. Para o mapeamento não exaustivo das
pesquisas que empregaram a Teoria Fundamentada, foram realizadas buscas no
Google Acadêmico, banco de teses e dissertações da Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), banco de dados do IBICT
(Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia) e na base Lisa
(Library Information Scientific Abstratcts). No Brasil, a metodologia é
utilizada predominantemente na área de enfermagem da qual se originou (Santos,
1997; Oliveira, 1998; Lacerda e Oliniski, 2004; Mussi 2004; Abuchaim, 2005). Na
área de ciências humanas, foram encontrados trabalhos na psicologia (Silva,
1998; Tannous, 2005) e na educação (Nunes, 2001; Yunes, 2001). Nas ciências
sociais, foram encontradas pesquisas na administração (Verle, 1999; Alperstedt,
2001; Santos, 2005); comunicação (Fossati, 1998) e na ciência da informação
(Simões, 1997; Caregnato, 2000; Soares, 2003; Thomaz, 2005). Embora seja uma
abordagem relativamente nova no Brasil, verifica-se um aumento considerável do
uso da metodologia a partir de 2000.
A Teoria Fundamentada originou-se
de duas linhas de pensamento referentes às posturas filosóficas e à formação
dos dois sociólogos: Anselm Strauss, do
interacionismo simbólico[2], e Barney Glaser,
estatística positivista. O primeiro, oriundo da universidade de Chicago
com longa tradição de pesquisa qualitativa, é admirador das idéias de Robert E.
Park, W. I. Thomas, John Dewey, G. H. Mead, Everett Hughes e Hebert Blumer,
inspirando-se no interacionismo e no pragmatismo. O segundo, da Universidade de
Columbia, foi influenciado por Paul Lazarfelds, conhecido como inovador dos
métodos quantitativos (STRAUSS; CORBIN, 1990).
Para
Alvesson e Sköldberg (2000), o interacionismo simbólico foi a fonte de
inspiração mais importante para a construção da Teoria Fundamentada,
contribuindo com alguns elementos, como:
●
Pragmatismo: doutrina, segundo Pierce, que identifica a concepção de um objeto
à de seus efeitos possíveis, isto é, possui caráter funcionalista. Para os
pragmáticos saber o significado do fogo ou gravitação é saber quais são os
efeitos que produzem e para que servem. Uma idéia sempre deve ser submetida à
experimentação para determinar o seu valor. Nesse sentido, a verdade é uma
hipótese que passou pela experimentação (COMTE-SPONVILLE, 2003).
●
maior utilização de métodos qualitativos do que quantitativos;
●
exploração: função central nas ciências sociais em que o uso de um método
flexível de coleta de dados, no qual, os princípios de seleção permitem que os
conceitos descobertos preliminarmente sejam sucessivamente revisados e
complementados durante o processo de pesquisa;
●
conceitos sensibilizantes: favorecimento da criação de conceitos que estimulam
a percepção de novas relações, perspectivas e pontos de vistas, ao invés da
criação de técnicas que proporcionam mais exatidão;
●
ação social: o foco principal é um micro processo em que há interação entre
dois atores por meio dos símbolos a serem compreendidos por eles;
●
símbolos cognitivos: as pessoas criam e recriam continuamente em contato com os
outros atores. Esse elemento aborda a idéia de representação em que a mente é
compreendida em oposição à metáfora da caixa preta como na perspectiva
behaviorista tradicional, ou seja, a mente atua como uma processadora de
significados. uma crítica recorrente a essa perspectiva é que os elementos
emocionais são subestimados em detrimento do cognitivo;
●
orientação para os dados empíricos e indução sucessiva: pesquisadores deveriam
iniciar indutivamente das interações simbólicas do cotidiano e não se
distanciarem muito delas.
Apesar
da forte influência do interacionismo simbólico, ele não foi a única fonte de
inspiração para a Teoria Fundamentada. Glaser usou como modelo o método de
análise estatística na concepção da Teoria Fundamentada, integrando a forma
positivista com a qualitativa. Por conseguinte, o positivismo estatístico,
herdado do programa de pesquisa de Lazersfelds, em que os dados constituem o
princípio e o fim do processo científico, proporciona uma abordagem mais
rigorosa (ALVESSON, SKÖLDBERG, 2000).
Na Teoria Fundamentada, os
conceitos[3] emergentes dos dados empíricos são blocos fundamentais da
construção da teoria, cujo foco se centra na descoberta por meio de uma
metodologia flexível e, ao mesmo tempo, conforme afirmam Strauss e Corbin
(1990), significativa, generalizável, reproduzível, precisa, rigorosa e
verificável, critérios necessários a uma ‘boa’ pesquisa.
Glaser
e Strauss (1967) argumentam que existem crenças de que a aplicação das teorias
formais fornecerá os conceitos e hipóteses necessárias à explicação do
fenômeno. Nesse caso, a tendência é que o pesquisador tente ajustar os dados
aos pressupostos teóricos, deixando de observar, muitas vezes, conceitos e
hipóteses que possam surgir. Em contraposição, na Teoria Fundamentada, o
pesquisador construirá uma teoria a partir da observação específica do fenômeno
e não pela aplicação de uma teoria pré-estabelecida para explicá-lo. O
propósito é desenvolver uma teoria e não meramente descrever um fenômeno.
Portanto,
a abordagem da Teoria Fundamentada não parte de um modelo baseado em
conhecimentos teóricos, mas focaliza os dados e o campo em estudo. As suposições
teóricas são descobertas e formuladas ao se lidar com o campo (FLICK, 2000,
p.58), como elucidam Strauss e Corbin:
Uma
Teoria Fundamentada é aquela derivada indutivamente do estudo do fenômeno que
representa. Isto é, ele é descoberto, desenvolvido, e provisoriamente
verificado por meio de sistemática coleta e análise de dados. Portanto, a
coleta de dados, análise e teoria possuem relação recíproca entre si. Não se
começa com uma teoria para prová-la.
Começa-se com uma área de estudo em que se permite a emersão do que é
relevante (1990, p.23).
O
modelo do processo de pesquisa na Teoria Fundamentada, diferente da seqüência
linear dos métodos quantitativos, apresenta uma interdependência e encadeamento
circular das partes em que as atividades ocorrem simultaneamente. Nesse
processo, incluem-se três etapas principais — a amostragem teórica, a
codificação e a redação da teoria — que serão tratadas a seguir.
Amostragem teórica
A amostragem teórica é uma
estratégia de definição gradual da amostra (FLICK, 2004), que provê uma
orientação constante ao pesquisador para direcionar o processo de coleta, organização
e interpretação dos dados com o objetivo de oferecer sustentação teórica até a
saturação da amostra, como proposto por Glaser e Strauss:
A
amostragem teórica é o processo de coleta de dados para a geração da teoria por
meio da qual o analista coleta, codifica e analisa conjuntamente os dados,
decidindo quais serão coletados a seguir e onde encontrá-los para fundamentar a
teoria emergente. Esse processo é controlado pela teoria em formação (1967,
p.45).
Nessa
metodologia, postula-se que o pesquisador deve, inicialmente, deixar o seu
conhecimento em ‘estado de suspensão’ para que a teoria possa emergir, ou seja,
deve-se estar aberto ao novo e ao inesperado. Em geral, ele possui conhecimento
teórico sobre o objeto que abordará, como os conceitos, as principais
características da estrutura e dos processos, mas somente conhecerá a
relevância dos conceitos em determinado contexto ao longo do processo de
pesquisa (FLICK, 2004).
Os
dados são coletados, codificados e analisados de forma sistemática e simultânea
até a saturação teórica, ou seja, até que dados novos ou relevantes não sejam
mais encontrados ou que comecem a se repetir. Para tal empreendimento, deve-se
utilizar a “sensibilidade teórica”, compreendida como a destreza para olhar os
dados com perspicácia e imaginação com o objetivo de verificar a relevância dos
dados e discernir o que é ou não é pertinente ao estudo (STRAUSS; CORBIN,
1990).
Um ponto básico da amostragem
teórica diz respeito à seleção da amostra, cuja representatividade é garantida
por sua relevância. Os critérios de seleção não se baseiam nas técnicas usuais
como amostragem aleatória ou estratificação, mas pelos insights que se acredita
que uma pessoa possa trazer para o desenvolvimento da teoria. Nessa perspectiva,
as questões “Quais grupos ou subgrupos de populações, eventos, atividades,
devemos interpelar? E com quais objetivos?” (STRAUSS, 1987, p.38) são decisões
cruciais para a Teoria Fundamentada.
Muitas
técnicas de coleta de dados podem ser utilizadas na Teoria Fundamentada, como a
observação participante, entrevistas, discursos, cartas, biografias,
autobiografias, pesquisa na biblioteca. Independente do método utilizado para
coletar os dados, sublinha-se que a abordagem se concentra firmemente na interpretação
dos dados. Após a estratégia para a coleta de dados, que acontece de forma
gradual, estes são utilizados para os procedimentos de análise, descritos a
seguir.
Codificação
Para Flick (2004), a interpretação
de dados é o cerne da pesquisa qualitativa, cuja função é desenvolver a teoria,
servindo de decisão sobre quais dados serão trabalhados. A codificação refere-se aos procedimentos
utilizados para rotular e analisar os dados coletados. Pode ser definida, de
acordo com Strauss e Glaser, como “o termo geral para conceitualização de
dados; assim, os códigos abrangem questões nascentes e oferecem respostas
provisórias sobre categorias e seus relacionamentos” (1987, p.21).
A codificação dos dados envolve
comparações constantes entre fenômenos, casos e conceitos, as quais conduzem ao
desenvolvimento de teorias por meio da abstração e relações entre os elementos
(Flick, 2004). Os objetivos dos procedimentos de codificação, enumerados por
Strauss e Corbin, (1990) são:
●
construir/gerar uma teoria ao invés de verificá-la;
●
prover aos pesquisadores ferramentas analíticas “rigorosas” para se fazer uma
pesquisa de qualidade;
●
auxiliar os pesquisadores a lidarem com os preconceitos e concepções prévias ou
que podem ser desenvolvidos durante o processo de pesquisa;
●
prover uma fundamentação densa e desenvolver a sensibilidade e integração
necessárias a geração de uma teoria exploratória, rica e rigorosa, que se
aproxime da realidade que representa.
Os procedimentos de codificação são
denominados de codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva que
devem ser entendidos como formas diferentes de tratar os dados, muito mais do
que etapas firmemente demarcadas, claramente distintas e temporalmente
separadas (GLASER; STRAUSS, 1967).
Codificação aberta
Strauss e Corbin (1990) conceituam
codificação aberta como o processo analítico pelos quais os conceitos são
identificados e desenvolvidos em relação as suas propriedades[4] e
dimensões[5]. Esse processo envolve as atividades de quebrar, examinar,
comparar, conceituar e categorizar os dados que serão sumarizados em uma lista
de códigos[6] e categorias[7] originadas dos rótulos atribuídos livremente a
cada frase, linha ou parágrafo.
Na
codificação aberta, a comparação e os questionamentos são dois procedimentos
analíticos básicos que propiciam precisão e especificidade, características
fundamentais aos conceitos. Para rotular os dados, utilizam-se as perguntas e
comparações em busca de similaridade e diferenças entre cada incidente, evento
ou situação: “O que é isto? O que representa?” (STRAUSS; CORBIN, 1990, p.63).
Os eventos e incidentes semelhantes são comparados e agrupados para formar
categorias.
Um
erro comum entre os pesquisadores iniciantes é resumir os dados e não conceituá-los. Isto é, eles tendem a repetir
a essência da frase ou sentença. A questão pode ser exemplificada com a situação
sugerida por Strauss e Corbin (1990, p.64):
O
mâitre desceu e eles (o mâitre e a funcionária) conversaram por alguns momentos
e procuraram por mesas vazias no restaurante, avaliando em que ponto da
refeição os clientes sentados pareciam estar: os dois estavam conferindo.
No caso, ao invés de usar o rótulo
“Conferência” para descrever a observação, pesquisadores iniciantes usam termos
como: “Ela conversou com o mâitre” ou “Observaram o salão do restaurante”. No entanto, o termo conferência é mais efetivo
para “representar o conteúdo de uma
categoria de forma marcante... e auxiliar na lembrança da referência da
categoria” (FLICK, 2004, p.190).
No
decorrer da pesquisa, segundo o relato de Strauss e Corbin (1990), é comum a
obtenção de centenas de códigos que, em decorrência, devem ser novamente
categorizados e reunidos em torno dos fenômenos relevantes descobertos nos
dados. Nesse caso, porém, os conceitos assumem um caráter mais abstrato do que
aqueles agrupados sob eles. As categorias têm força conceitual porque
integram-se a elas outros conjuntos de
conceitos e subcategorias. E para que essas categorias possam ser desenvolvidas
com mais precisão, suas propriedades são classificadas e dimensionadas ao longo
de um continuum. Toma-se, por exemplo, a categoria cor, cujas propriedades
incluem tonalidade, intensidade e nuance que podem ser dimensionadas, isto é,
as categorias podem variar ao longo dos continua. Assim, a cor pode variar de
intensidade maior para menor, de uma nuance mais clara para outra mais escura.
A
aplicação da codificação aberta pode ser realizada pela análise linha a linha,
frase a frase, parágrafo a parágrafo ou de documentos inteiros, dependendo da
questão e intenção da pesquisa, do estágio da pesquisa ou estilo do
pesquisador. O produto dessa fase é uma lista de códigos e categorias que deve
ser complementada pelas notas em código (um tipo de memorando) criadas para
explicar e definir o conteúdo dos códigos e categorias (STRAUSS; CORBIN, 1990).
As
concepções prévias, bem como os preconceitos, experiências ou padrões de
pensamentos dos pesquisadores, acabam por interferir na análise dos dados,
dificultando, às vezes, uma interpretação mais isenta. Para minimizar o
problema, Strauss e Corbin (1990) sugerem que os pesquisadores devem desenvolver
a “sensibilidade teórica”, ou seja, a “habilidade de ver com profundidade
analítica o que existe” (p.76), utilizando técnicas como:
●
encaminhar os pensamentos para além dos limites da literatura técnica e da
experiência pessoal;
●
evitar usar formas padronizadas de pensamento sobre o fenômeno;
●
estimular o processo indutivo;
●
evitar as suposições prévias sobre os dados;
●
permitir que as concepções dos sujeitos da pesquisa sejam esclarecidas ou
desmascaradas;
●
ouvir o que as pessoas dizem e quais significados podem, possivelmente, ser
retirados das falas;
●
evitar precipitar os conhecimentos prévios quando examinar os dados;
●
forçar as perguntas sobre as questões e prover respostas provisórias;
●
permitir a realização de rótulos férteis mesmo que provisoriamente;
●
explorar ou esclarecer os possíveis significados dos conceitos;
●
descobrir as propriedades e dimensões dos dados.
Outras
técnicas como o uso do questionamento, análise de palavra, frase ou sentença,
os procedimentos “flip-flop”[8] podem auxiliar a desvendar mais apuradamente as
dimensões e conteúdos de uma categoria. Os autores ressaltam que não sabem
exatamente quais são os valores das técnicas para os pesquisadores novatos ou
mais experientes, mas que elas estão mais vinculadas à prática do que a
criatividade e imaginação.
Codificação
axial
O
objetivo dessa etapa consiste em aprimorar e diferenciar as categorias
resultantes da codificação aberta. O pesquisador seleciona as categorias mais
relevantes e as coloca como fenômeno central para estabelecer as relações entre
as categorias e subcategorias:
A
codificação axial é um conjunto de procedimentos após a codificação aberta em
que os dados são colocados em uma nova forma, por meio das relações entre as
categorias. Isto é realizado com o paradigma de codificação que envolve
condições[9], contexto[10], estratégias de ação/interação[11] e suas
conseqüências[12] (STRAUSS, CORBIN, 1990, p. 96).
Os autores advertem que a
codificação aberta e axial são procedimentos analíticos distintos que podem ser
mais bem compreendidos ao se considerarem quatro pontos importantes:
(1) na codificação aberta, muitas categorias são
identificadas. Algumas dessas referem-se a fenômenos específicos como
condições, estratégias ou conseqüências; (2) na codificação aberta, essas
categorias não estão, necessariamente, agrupadas sob fenômenos específicos que
denotam condição, estratégia ou conseqüência. O pesquisador é quem deve
identificá-las como tais, como exemplificado na frase: “Quando eu tenho
(condição) dor de artrite (fenômeno), eu tomo aspirina (estratégia). Após um
tempo, eu me sinto melhor (conseqüência)”; (3) cada categoria ou subcategoria
possui propriedades específicas que podem ser dimensionadas, oferecendo outras
especificações para as categorias. Por exemplo, a subcategoria “alívio da dor”
(conseqüência) tem propriedades gerais como duração, grau, potencial para
causar efeitos colaterais. O fenômeno “dor de artrite” possui propriedades como
grau, duração e intensidade. Assim, as propriedades são específicas para cada
caso, isto é, para cada fenômeno poderá ser dado uma localização dimensional
específica; (4) na codificação axial, as subcategorias são descritas por meio
do paradigma de codificação.
O paradigma da codificação torna
possível a sistematização dos dados por meio das relações entre as categorias e
subcategorias com a utilização dos termos:
A Condições causais
B Fenômeno
C Contexto
D Condições intermediárias
E Estratégias de
ação/interação
F Conseqüências
Fonte:
Strauss e Corbin, 1990, p.99.
Flick
(2004) avalia o paradigma da codificação como um modelo ao mesmo tempo simples
e genérico, mas com potencial para esclarecer as relações entre um fenômeno em
que o pesquisador se move continuamente entre o pensamento indutivo[1] e o
dedutivo[2].
Codificação seletiva
Na
terceira e última etapa da codificação, o objetivo é integrar e refinar
categorias em um nível mais abstrato. A tarefa é elaborar a categoria
essencial, em torno da qual as outras categorias desenvolvidas possam ser
agrupadas e pelas quais são integradas: “O fenômeno central é o coração do
processo de integração” (STRAUSS; CORBIN,1990, p.124)
Para
tanto, o primeiro passo envolve a formulação ou elaboração da “história do
caso” com o objetivo de oferecer um breve panorama geral descritivo. Depois,
faz-se necessário mover da descrição para a conceitualização por meio da
elaboração da “linha da história”. Assim, tanto na codificação aberta quanto na
axial, os fenômenos foram nomeados para que nessa fase o pesquisador possa
olhar a lista de categorias e avaliar qual delas é abstrata o suficiente para
englobar todas as outras descritas na história. O resultado deve ser uma
categoria central juntamente com as categorias relacionadas a ela. Portanto, o pesquisador deverá escolher entre
dois ou mais fenômenos igualmente salientes (STRAUSS; CORBIN,1990, p.120-121)
A
categoria central é essencial para a integração de todos os elementos da
teoria, pois é a partir dela que as propriedades e dimensões devem ser
identificadas. Após essa etapa, novamente deve-se empregar o paradigma –
condições, contexto, estratégias e conseqüências – nas relações entre as
categorias (STRAUSS; CORBIN, 1990).
Strauss
e Corbin (1990) esclarecem que a categoria central não precisa ser
necessariamente um processo psicossocial básico. O critério para escolha da
categoria central relaciona-se ao ajuste e descrição do fenômeno, de tal forma
que esse seja suficientemente amplo para englobar e relacionar as categorias
subsidiárias às outras categorias como na metáfora: a categoria central deve
ser o sol se relacionando sistematicamente com os planetas.
Em
suma, observa-se que as várias fases da Teoria Fundamentada ocorrem
simultaneamente, permitindo ao pesquisador fazer as modificações necessárias no
transcorrer do processo. O procedimento de retroalimentação constante com os
indivíduos da pesquisa, possibilita entender melhor o fenômeno estudado. Assim,
à medida que os dados são coletados e analisados, surgem outros novos que
direcionarão as novas coletas, produzindo categorias mais refinadas até a
saturação.
Para
auxiliar o pesquisador nas diversas fases da pesquisa, os autores propõem
instrumentos e procedimentos para analisar os dados.
Instrumentos analíticos da Teoria
Fundamentada
As
duas fases vinculadas estreitamente com a construção da teoria foram descritas
nos tópicos anteriores. Para melhor compreensão da metodologia, antes da
descrição da terceira fase, a redação da teoria, faz-se necessário apresentar
algumas ferramentas e procedimentos essenciais para a amostragem e codificação.
Matriz condicional
Devido a compreensão da Teoria
Fundamentada como sistema transacional, método de análise que permite examinar
a natureza interativa dos eventos, Strauss e Corbin (1990) sugerem a utilização
da matriz condicional como instrumento analítico que permite:
● auxiliar o pesquisador a ser
teoricamente sensível para alcançar as condições em que se insere o fenômeno
estudado;
● habilitar o pesquisador a ser
teoricamente sensível para perceber as conseqüências potenciais que resultam da
ação/interação;
●
assessorar o pesquisador a relatar sistematicamente condições, ações/interações
e as conseqüências para o fenômeno.
A matriz condicional pode ser
representada por um conjunto de círculos inseridos em outros. Cada círculo
corresponde a um nível de diferentes aspectos do mundo em torno dos sujeitos e
do pesquisador: “o pesquisador precisa preencher as características
condicionais específicas para cada nível pertencente à área escolhida da
investigação” (p.162). Os itens a serem incluídos dependem do tipo e do assunto
da pesquisa e podem surgir da literatura ou da experiência do pesquisador.
As características gerais dos
níveis da matriz incluem desde os contextos mais amplos situados nos círculos
mais externos até a ação pertencente ao fenômeno estudado no centro da matriz,
como mostra o modelo:
● Nível Internacional: política
internacional, normas governamentais, cultura, valores, filosofia, economia,
história, problemas internacionais e questões ambientais.
● Nível nacional: política
nacional, normas governamentais, cultura, história, valores, economia,
problemas e questões.
● Nível comunitário: os itens
citados acima no contexto que possui características demográficas próprias.
● Nível organizacional e
institucional: características peculiares do local estudado.
● Nível sub-organizacional e
sub-institucional: características particulares de um sub-local dentro de um
local mais amplo onde o estudo acontecerá.
● Nível coletivo, grupo e
individual: biografias, filosofias, conhecimento e experiências das pessoas e
familiares quanto o interesse do grupo (interesses especiais, profissionais e
científicos).
● Nível interacional: a interação
refere-se às atividades que as pessoas fazem juntas ou relacionadas uma com a
outra e a ação, conversas e processos de pensamento que acompanham o fazer
dessas coisas no âmbito do fenômeno estudado. A interação é realizada por meio
de processos como negociação, ensino, discussão, debate e auto-reflexão.
● Nível da ação: refere-se à
dimensão estratégica e de rotina. Representa a forma individual da ação,
expressão da pessoa ou de outra interação realizada para gerenciar e responder
ao fenômeno.
A
matriz condicional é operacionalizada pela localização da trajetória
condicional que envolve o acompanhamento dos eventos ou incidentes através dos
vários níveis da matriz para determinar como se relacionam. Os autores
exemplificam que não é suficiente fazer uma afirmação do tipo “a tecnologia tem
despersonalizado os cuidados médicos”, mas consideram necessário para ser
significativo:
mostrar
especificamente como, quando, onde, com quais conseqüências, a tecnologia (e
qual tecnologia) tem despersonalizado os cuidados médicos e as estratégias para
ser usadas contra a despersonalização (STRAUSS; CORBIN, 1990, p.167).
Para ilustrar a importância de se
traçar uma trajetória condicional será apresentado um exemplo resumido
oferecido pelos autores sobre um incidente ocorrido em um hospital: uma médica
ao fazer a ronda na unidade médica solicitou a enfermeira que a acompanhava
luvas esterilizadas tamanho 6 para checar a colostomia de um paciente,
recusando as luvas de tamanhos diferentes que tinham sido oferecidas. A
enfermeira chefe ao tomar conhecimento da necessidade da médica, após várias
estratégias como contato com a central de fornecimentos e outras unidades para
localização do recurso, conseguiu obter as luvas em um tempo aproximado de 30
minutos.
O
fenômeno estudado era o fluxo de trabalho na unidade médica. Pela análise do
incidente foi possível observar que: (a) o trabalho da enfermeira chefe foi
interrompido pela falta de um recurso (luvas tamanho 6) - nível da ação; (b) a
enfermeira chefe tentou sem sucesso persuadir a médica a aceitar outro par de
luvas para depois tentar localizar o recurso em outros departamentos – nível
interacional; (c) outra médica poderia ter aceitado luvas de outro tamanho, mas
a médica em questão recusou porque suas mãos eram pequenas – nível individual;
(d) havia pequena quantidade de luvas esterilizadas na central de fornecimento
do hospital, porque elas estavam sendo mais utilizadas devido a uma campanha
nacional sobre controle de infecções – nível sub-organizacional; (e) para
assegurar que cada unidade tenha uma quantidade adequada de luvas para cada
tipo de trabalho (cirurgia, procedimentos de rotina), o hospital mantém as
luvas trancadas para serem entregues de acordo com a necessidade – nível
organizacional; (f) o suprimento de luvas também era limitado na comunidade,
pois muitos hospitais e profissionais aderiram a campanha de controle de
infecção e estavam usando luvas nos procedimentos médicos em que havia contato
com os pacientes. O fato afetou a produção e distribuição de luvas na
comunidade que não estava preparada para atender a demanda – nível comunitário;
(g) a campanha de controle de infecção nacional surgiu para reduzir o grande
número de contaminação de doenças, em especial, a AIDS pelos profissionais que
não utilizam os recursos e procedimentos adequados – nível nacional.
Ao
observar a dificuldade na obtenção da luva no hospital, traçou-se uma
trajetória que perpassou vários níveis da matriz possibilitando uma compreensão
mais apurada do fenômeno. Ressalta-se que não é qualquer incidente e evento que
necessita de ser investigado mais profundamente, mas aqueles que parecem ser
relevantes ao assunto pesquisado.
Memorandos e diagramas:
Os
memorandos e diagramas são registros das análises dos pesquisadores,
representando, por meio da forma escrita, o pensamento abstrato sobre os dados
e as representações gráficas ou imagem visual das relações entre os conceitos
que devem ser construídos para o desenvolvimento da teoria. Podem assumir
diferentes formas de acordo com os objetivos:
(1)
Notas de códigos: memorandos que contém o produto atual de três tipos de
codificação, tais como, rótulos conceituais, características do paradigma e
indicação de processo. (2) Notas Teóricas: memorandos resumidos e teoricamente
sensibilizantes que contém o produto do pensamento dedutivo e indutivo sobre as
propriedades, dimensões, relações, variações, processos e matriz condicional
das categorias relevantes e potencialmente relevantes. (3) Notas operacionais:
memorandos que contém diretrizes para o próprio pesquisador e membros da equipe
relativo a amostragem, questões, possíveis e comparações que possibilitam o
desenvolvimento da pesquisa. (4) Diagramas lógicos: representação visual do
pensamento analítico que mostram a evolução das relações lógicas entre
categorias e subcategorias em termos de características de paradigma.(5)
Diagramas integrados: representações visuais do pensamento analítico que são
usados para experimentar e mostrar encadeamentos conceituais cujos formatos não
estão vinculados ao paradigma, mas deixado aberto à imaginação. (STRAUSS;
CORBIN, 1990, p.197).
À medida que a pesquisa transcorre, os
memorandos e diagramas mostrarão mais profundidade e complexidade do
pensamento, refletindo a evolução teórica.
Por fim, de posse dos instrumentos e com os dados analisados, a terceira
e última fase é a redação da teoria.
Redação da teoria
Ao longo do processo da pesquisa, o
pesquisador construiu vários instrumentos analíticos como memorandos,
diagramas, registro das relações entre a categoria central e as subcategorias e
uma história analítica global que serão o alicerce para a redação da teoria.
Mesmo que o pesquisador não tenha habilidades especiais para a escrita,
aprendeu procedimentos analíticos essenciais que o auxiliará nas primeiras
fases do texto e que poderá ser reescrito no final do processo. A questão
principal “é como traduzir esse material analítico de forma clara e efetiva
para que outros possam se beneficiar ao utilizá-lo?” (STRAUSS; CORBIN, 1990,
p.225). Para tanto, é preciso que o pesquisador tenha construído:
(1) Uma
história analítica clara. (2) A redação em nível conceitual, com a descrição em
posição secundária. (3) A especificação clara das relações entre as categorias,
também com o esclarecimento dos níveis de conceitualização. (4) A especificação
das variações e suas condições, conseqüências, e o que mais forem relevantes...
(STRAUSS; CORBIN, 1990, p.229).
A relevância da redação na pesquisa
qualitativa relaciona-se com a apresentação das descobertas do projeto, como
base para avaliação dos procedimentos, resultados e condições gerais da pesquisa como um todo
(FLICK, 2004). Strauss e Corbin (1990) sugerem como apresentar a pesquisa na
forma verbal e escrita (monografias e artigos), porém nesse trabalho será
abordada brevemente somente a redação da monografia (dissertações e teses).
Em
geral, ao construir uma tese baseada na Teoria Fundamentada deve-se ter em vista
dois procedimentos: desenvolvimento de uma história analítica clara por meio
dos diagramas e memorandos e o delineamento de um esquema principal provisório
que incorporará os componentes relevantes da história. Os esclarecimentos dos
conceitos e das principais linhas de desenvolvimento auxiliam muito na
construção de uma teoria concisa. Com o esquema geral delimitado, o texto tem
condições de fluir mais facilmente, levando-se em conta que não se deve cair na
armadilha de querer escrever o texto perfeito que nunca é terminado. Por fim,
os autores sugerem que se leve em conta o público-alvo para a redação do texto
(STRAUSS; CORBIN, 1990).
Após
a redação da teoria, deve-se uma avaliação final da evolução da pesquisa de
acordo com os padrões e procedimentos do método de pesquisa utilizado. Os
autores sugerem critérios para avaliá-la pelo produto final que também podem
ser utilizados pelas agências de fomentos ou outros pesquisadores que queiram
julgar pesquisas que utilizaram a Teoria Fundamentada.
Critérios para avaliação da Teoria
Fundamentada
A literatura científica mostra que
a pesquisa pode ser julgada, primeiramente, pela validade, confiabilidade e
credibilidade dos dados. Em segundo, pela adequação do processo de pesquisa pela
qual a teoria é gerada, elaborada ou testada. E por fim, pela fundamentação
empírica utilizada na pesquisa (STRAUSS; CORBIN, 1990).
O pesquisador deve ter em mente que
a pesquisa precisa ter informações necessárias que possibilitarão a compreensão
dos leitores e, também, a avaliação da própria pesquisa: (1) o método e
fundamentação de seleção da amostra; (2) descrição das principais categorias;
(3) descrição dos principais eventos, incidentes e ações que indicaram algumas
das categorias principais; (4) descrição de como as formulações teóricas
conduziram a coleta de dados e a representatividade das categorias; (5)
descrição das hipóteses pertinentes as relações entre as categorias e como
foram formuladas e testadas; (6) descrição das hipóteses não provadas e as
discrepâncias que as afetaram; (7) descrição de como e porque a categoria
central foi selecionada e em que base as decisões analíticas foram tomadas
(STRAUSS; CORBIN, p.253).
Em relação à fundamentação empírica
do estudo, Strauss e Corbin (1990) sugerem sete perguntas para avaliação: (1)
os conceitos foram gerados?; (2) os conceitos apresentam relação sistemática?;
(3) existem muitas relações conceituais e categorias bem desenvolvidas? Elas
apresentam densidade conceitual?; (4) existem muitas variações na construção da
teoria?; (5) foram observadas e explicadas as condições mais amplas que afetam
o fenômeno estudado?; (6) o processo foi levado em consideração? e (7) até que
ponto a teoria descoberta parece significante?
Acrescentam ainda que os critérios para
avaliação permitem que os pesquisadores possam ter diretrizes para avaliar a
pesquisa, porém novas áreas de investigação podem precisar de adequação ou
novos procedimentos para preencher as circunstâncias da pesquisa. Pesquisadores
imaginativos, às vezes, podem não utilizar as diretrizes ‘autorizadas’ para os
procedimentos. Mas, nesses casos incomuns, deve-se precisar como e porque os
critérios não foram utilizados.
Outra
questão que parece ser necessária para avaliar a adequação do método à pesquisa
é saber quando usar a Teoria Fundamentada. Em linhas gerais, a metodologia
parece favorecer as pesquisas de natureza exploratória em que: (1) deseja-se
gerar uma teoria, mais do que verificar; (2) explicar um processo, ação ou
interação; (3) quando é necessário um procedimento sistematizado passo a passo;
(4) quando a pesquisa é orientada para os dados.
Limitações do método
Flick (2004) pondera que a
principal limitação, grosso modo, relaciona-se com a dificuldade de
diferenciação entre o método e a arte. A codificação aberta, por exemplo, pode
ser aplicada a todos os trechos de um texto, gerando várias categorias que
podem ser continuamente comparadas e elaboradas por meio da integração da amostragem
teórica. Não existem critérios rígidos para a saturação, sendo uma decisão do
pesquisador quanto à seleção e encerramento, fato este que pode resultar em
muitos códigos e comparações.
Alvesson e Sköldberg (2000)
criticam a forte resistência às influências ‘intertextuais’ oriundas das
teorias anteriores que, também, tendem a separar a teoria da prática.
Pela
análise da metodologia, podem-se acrescentar algumas questões que suscitam
cuidados em relação ao uso da metodologia, por exemplo: (1) as medidas tendem a
ser mais subjetivas e, portanto, a maximização do viés do observador pode
comprometer a validade do estudo; (2) os resultados, apesar de mostrarem
tendências, não podem ser generalizados; (3) o trabalho é complexo, podendo
aumentar os custos da pesquisa; (4) a análise dos dados subjetivos é, muitas
vezes, percebida como problemática, trabalhosa, e o pesquisador deve ser muito
experiente, a ponto de poder criticar a possibilidade de seu próprio viés de
observação.
Conclusão
A Teoria Fundamentada é uma metodologia complexa e requer experiência do
pesquisador. Em oposição às abordagens puramente quantitativas, possui desenho
flexível, permitindo maior aprofundamento e detalhamento dos dados, assim como
possibilidade de adequação ao objeto de estudo. Nessa abordagem, não existem
regras metodológicas fixas e totalmente definidas, mas diretrizes, estratégias
e abordagens para as diversas fases do processo.
Por
meio dos procedimentos, os pesquisadores são forçados a questionar e rever
criticamente as próprias interpretações durante a pesquisa. Um argumento
importante da metodologia é que múltiplas perspectivas devem ser
sistematicamente procuradas durante a investigação, possibilitando, com a
utilização dos procedimentos, desenvolver uma teoria de grande densidade
conceitual (refere-se à riqueza do desenvolvimento de conceitos e relações) e
significativa. Os procedimentos incluem a comparação constante, a geração de
questões relacionadas ao conceito, amostragem teórica, atividades sistemáticas
de codificação, diretrizes propostas para obter “densidade” conceitual e
integração conceitual. E mais recentemente, incluem também a conceitualização e
diagramação de uma “matriz condicional” (STRAUSS; CORBIN, 1990), que oferece
subsídio para especificar as condições e conseqüências, em qualquer nível da
escala, e integrá-las dentro da teoria resultante.
Para
finalizar, a despeito de todas as verdades ou descobertas que emergem das
pesquisas, endossa-se a posição de Dewey (1938) ao afirmar que uma teoria não é
uma formulação de algum aspecto descoberto de uma realidade preexistente.
Teorias são interpretações produzidas de algum ponto de vista e adotadas ou
averiguadas por pesquisadores. Portanto,
são falíveis, o que não significa, em absoluto, negar que elas possam ser
julgadas sobre sua segurança ou provável utilidade, mas que são temporariamente
limitadas. Isto é, são sempre provisórias e restringidas pelo tempo.
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Nota: foram retirados imagens e figuras desse
artigo. Ver original na obra.
[1]
Indutivo: “desenvolve conceitos, categorias e relações a partir do texto”
(FLICK, 2004, p.193).
[2]
Dedutivo: “testa os conceitos, categorias e as relações em contraposição ao
texto, especialmente os trechos ou casos que sejam diferentes daqueles a partir
dos quais eles foram desenvolvidos” (FLICK, 2004, p.193).
[1]
Fenômeno refere-se “a idéia central de um evento, acontecimento ou incidente,
na qual, um conjunto de ações ou interações é
direcionada e gerenciada, ou na qual
um conjunto de ações é relatado” (STRAUSS; CORBIN, 1990, p.96)
[2]
Termo cunhado por Blumer. Trata-se do “estudo dos significados subjetivos e das
atribuições individuais do sentido” (FLICK, 2004, p.33).
[3]
“Conceitos são rótulos atribuídos aos acontecimentos, eventos e outras
instâncias do fenômeno” (STRAUSS; CORBIN, 1990, p.96).
[4]
Propriedades: atributos ou características pertencentes a uma categoria (STRAUSS;
CORBIN, 1990).
[5]
dimensões - localização das propriedades ao longo de um continuum dados
(STRAUSS; CORBIN, 1990).
[6]
Códigos: Rótulos oriundos do processo de análise dos dados (STRAUSS; CORBIN,
1990).
[7]
Categoria: compreende uma classificação de conceitos descoberta por meio da
comparação entre os conceitos pertencentes a um fenômeno similar (STRAUSS;
CORBIN, 1990).
[8]
Técnica “Flip-flop”: a comparação entre os extremos de uma dimensão ou
fenômenos provenientes de contextos completamente diferentes (STRAUSS; CORBIN,
1990).
[9]
“Condições causais: eventos, incidentes, acontecimentos que orientam a
ocorrência ou desenvolvimento de um fenômeno” (STRAUSS; CORBIN, 1990, p. 96).
[10]
Contexto: conjunto de propriedades pertencentes ao fenômeno, isto é, representa
um conjunto de condições no qual as estratégias de ação/interação ocorrem
(STRAUSS; CORBIN, 1990, p.96).
[11]
Ação/interação: “estratégias aconselhadas para gerenciar, lidar, executar e
responder a um fenômeno sob um conjunto específico de condições percebidas”
(STRAUSS; CORBIN, 1990, p.97).
[12]
Conseqüências: “são os resultados da ação e interação” (STRAUSS; CORBIN, 1990,
p.97).
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